quarta-feira, 2 de julho de 2014

MORADORES DE FAVELA NA VILA OLÍMPIA TÊM DIREITO DE MORADIA GARANTIDO

Da Revista Vaidapé

por Fabrício Amorim.

O maior sonho de Rosana, Zezinho, Ana Cecília, e tantos outros moradores da Rua Coliseu está próximo da realização. O prefeito Fernando Haddad (PT) liberou R$ 40 milhões de reais para a urbanização da favela Funchal, instalada há mais de 55 anos na região da Vila Olímpia, bairro nobre de São Paulo. De acordo com a Prefeitura, o projeto para a definição das construções está sendo elaborado até o final do mês de junho e “nenhuma família ficará sem atendimento habitacional”. Cerca de 700 mil famílias moram em condições impróprias e necessitam de uma casa na cidade.
Com o direito à moradia garantida no mesmo local, resgata-se a dignidade, o respeito e a notabilidade que deveriam ser assegurados a todos – independente da condição de sua habitação. Telhado e concreto vão trazer às 270 famílias cadastradas mais do que um abrigo com condições melhores. “Acordamos de um sonho que está se tornando realidade. Existe barraco podre por cupim, alguns de três andares. É uma área de risco. Agora, quando as moradias ficarem prontas, vamos ganhar respeito”, afirma uma das colaboradoras da comunidade, Rosana Santos, que não apaga da cabeça as marcas que o preconceito deixa.
Na lembrança do barraco alagado nos anos 1970, da luta por saneamento básico, que foi vencida no final da mesma década, trazendo água e esgoto, Rosana nunca esquecerá a fase de sua vida em que teve de suprimir sua raiz, omitindo onde vive e nasceu. “Eu trabalhei cinco anos no bairro de Moema e mentia onde eu morava para manter o emprego. Outros funcionários falavam muito mal de favela e eu mexia diretamente com o dinheiro da empresa. Trabalhei cinco anos lá e eles não sabem até hoje que eu era moradora daqui. Por outro lado, quando falo que moro na Vila Olímpia, falam que sou ‘burguesa’. Mal sabem onde eu moro”, explica a colaboradora.
A Vila Olímpia era um bairro estritamente residencial com áreas alagadiças próximas ao leito do Rio Pinheiros, na parte baixa do bairro. No final dos anos 1950, as primeiras famílias que ocuparam o terreno, onde hoje está a comunidade, viram no entorno um local que ainda possuía feição de chácara. Nas proximidades, havia ocupações de campos de várzea, dentre outros posseiros que chegavam. Para ter uma ideia, a Marginal Pinheiros (trecho Castelo Branco-Bandeirantes) só seria construída em 1970; e a avenida Juscelino Kubitschek em 1976 –, com a canalização do ‘córrego do sapateiro’. Ou seja, era uma região pouco acolhedora, mas que cresceu rodeada pela classe média, até tornar-se um gigante econômico no início dos anos 1990.
Por ali se instalaram grandes empresas, universidades, shoppings, restaurantes e a especulação imobiliária viu desde cedo terreno fértil para ganhar muito dinheiro. Essa invasão do poder privado só foi possível após as obras nos rios Uberaba e Uberabinha, e após a regulamentação da Operação Faria Lima, no período da administração da Paulo Maluf (1993-1996). A lei Nº 11.732, DE 14 DE MARÇO DE 1995 articulou o alargamento e criação de avenidas, além de firmar compromisso de construção de moradias no mesmo local para moradores de favela na região. Logo de cara, não foi o que ocorreu. Mais de mil famílias foram obrigadas a deixar seus barracos na favela Juscelino Kubitschek, para a expansão da Avenida Brigadeiro Faria Lima sentido Avenida Santo Amaro. Atualmente, grande parte desta comunidade reside em Cidade Tiradentes, o que mostra o sucesso da política de exclusão social do prefeito na época.
Apesar do cenário ameaçador, a Operação Faria Lima não incomodou em nenhum momento a favela Funchal, que olhava desconfiada para tudo aquilo. “Não entendemos bem a garantia de moradia que a Operação Faria Lima dava. A gente deu sorte porque estávamos um pouco mais distantes, senão teríamos sido removidos. Pra gente era um susto tudo aquilo”, analisa Rosana.
Somente na década de 1990, supostos herdeiros do terreno reivindicaram o local como sendo de seu avô. Os moradores da comunidade procuraram um defensor público que conseguiu o “uso de posse”. Em seguida, a ação de usucapião embaralhou o processo sobre a terra na Justiça. Para destravar qualquer impasse perante o judiciário, a gestão Haddad pretende classificar a região como “Zona Especial de Interesse Social” (ZEIS) dentro da Operação Faria Lima.

Escondidos e procurados

Diante do crescimento do bairro e com a construção dos enormes prédios envidraçados ao lado da comunidade, a Rua Coliseu ficou praticamente escondida. Abordei dez funcionários de três empresas do prédio vizinho e somente dois sabiam da existência da favela. “Esses prédios grandes nos esconderam. Pior é que ficamos sabendo que nossos novos vizinhos se incomodam com a gente aqui. Mas eles que incomodam. E, na verdade, eles tiraram nosso sol”, comenta Rosana.
Há mais de uma década, a entrada da rua que abriga a comunidade, bem na esquina com a Rua Funchal, possui uma Base Comunitária Móvel da Polícia Militar, mas que é fixa, 24 horas por dia. “Segurança pra quem?”, perguntei a dois oficiais da PM, que me olharam com cara feia e responderam abruptamente: “Para todos”. A Rua Coliseu é uma via estreita e sem saída, que tem como vizinho de fundos o shopping JK Iguatemi e escritórios, prédios em seus flancos. O terreno possui 6.912 m² e foi avaliado pela Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio (Embraesp) em R$ 50 milhões.
Cientes da mina de ouro que equivale cada metro quadrado do bairro e sua valorização constante, diversas construtoras enviaram seus representantes com os mais variados discursos. “Vieram vários corretores aqui. Vários. E colocamos todos para correr. Os corretores chegam de terno e gravata, de maneira fina, botando pressão: ‘vocês vão ter que sair, vamos remover os barracos, esse terreno tem dono’. Os corretores acham que somos todos burros, que ninguém aqui estudou”, avalia Rosana.
E é justamente no caminho da educação e da cultura que a comunidade abriga seus jovens. Em um local batizado de “sede”, os jovens têm reforço escolar, além de atividades culturais e recreativas. “Trabalhamos com as crianças da comunidade justamente para elas não irem para as ruas. A gente ajuda muito quem tem dificuldade na escola. É muito importante esse espaço para as crianças”, explica a professora Ana Cecília Vieira, 29, que monitora a sede de ensino. “É um trabalho social. Todo mundo pode vir e usar. Tem que estudar, cara. Essa é a saída. Tem que estudar pra buscar uma saída”, completa Rosana.
Entretanto, a comunidade possui dificuldade em selar ações sociais com empresários nas proximidades. Eliana Tranchesi (falecida em 2012), proprietária da Daslu, loja que era vizinha à favela, tornou-se uma das principais figuras no auxílio à comunidade de diversas formas. De acordo com moradores, a empresária tentou apresentá-los aos donos do shopping JK Iguatemi, sem êxito. “O shopping JK Iguatemi nunca nos atendeu. Temos projetos interessantes e eles nem nos ouvem. Nunca atenderam ao telefone. O shopping diz que eu nunca procurei por eles. Mas, através da Eliana, disseram que quando o shopping estivesse pronto discutiriam com a comunidade o que dava para fazermos juntos. Nunca apareceram”, lamenta Rosana.
Procurado, o Shopping JK Iguatemi manteve o silêncio e não se manifestou até o fechamento desta matéria.

A cor da favela

José Pedro Silva, 51, representa a cor da favela. Mas chame-o de Zezinho. Assim é conhecido o pernambucano, reciclador de materiais, sorridente, carismático, que deu vida aos muros da comunidade. “A favela era muito cheia de palavrão, tinha um aspecto pesado. Então, eu comecei a desenhar e o primeiro desenho ficou muito feio. Ouvi muita gente dizendo para eu não desenhar mais nas paredes. Gente que nunca fez uma linha no papel vinha me diminuir, mas aquilo me deixava mais forte. Aí pensei em me aperfeiçoar e voltei a fazer vários”, conta.
A inspiração para os desenhos de Zezinho passa por sua fé, pelos colegas e familiares, como a professora Ana Cecília e as filhas; até a paixão pelo que define ser a melhor banda do mundo: Os Beatles. “Sou totalmente fã dos Beatles. Já me ofereceram muito dinheiro pela minha coleção de discos de vinil da banda. Não aceito! Desenhei até o rosto do John Lennon aqui na comunidade. A minha preferida deles é “Let it Be”, afirma.
Os desenhos e o gosto musical do reciclador rederam matérias em jornais e presença em programas populares, além de um registro que virou cartão postal pelo mundo. Um fotógrafo clicou a frase que Zezinho pintou no muro na comunidade: “Imagine Lennon in my Life”. Dessa maneira, o profissional ganhou o prêmio de melhor fotografia no World Press Photo de 2005, na categoria ‘Cotidiano’.
Mais do que qualquer coisa, Zezinho é um eterno sonhador que agora enxerga no horizonte a possibilidade de mais uma realização. “O sonho da moradia está, aos poucos, virando realidade. Mas o maior sonho do Zezinho nunca vai ser concretizado porque ele é movido pela paixão de viver e de ver todos bem.”, finaliza.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Breve genealogia de uma família de bem

Nos casos considerados extremos, o tataravô chicoteava pessoalmente o negro amarrado no poste. Da Casa Grande para o sobrado na cidade, aderiu ao positivismo. “O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim”. 

O bisavô cresceu em clima de instabilidade política e apoiou a Revolução de 1930. Vargas tinha a solução para colocar o país nos trilhos do futuro como almejava. Portanto, vibrou com o Estado Novo e brindou com champanhe o relacionamento com países amigos que colocavam seus territórios no eixo.

Entre comunistas, fascistas, tiros, bombas e dúvidas, o avô ouviu falar de um mundo em chamas e viu um país repleto de incertezas. Ficou indignado com 50 anos em 5 e decidiu varrer a bandalheira, jogando no lixo a corrupção e a desordem - até se decepcionar. Diante da ameaça que representava o perigo para a nação apoiou o golpe militar.

Dentro da ordem que era estabelecida o pai era alertado para a ação de terroristas que tentavam desestabilizar o Governo. Eles poderiam estar em qualquer lugar e eram impiedosos com seus inimigos. Entretanto, a polícia e os militares faziam seu papel garantindo a tranquilidade da gente de bem. Dormia tranquilo apesar da preocupação com a segurança de seus familiares.

O filho nasceu em um clima político diferente. Ele sente-se com sorte de viver em um país sem racismo, coisa que ficou lá trás. São tempos de democracia, o lamentável mal entendido do passado que ele ainda não compreende. Os problemas atuais são a corrupção, a segurança, e a ditadura que pode voltar. É rapaz, “esse pessoal governista quer implantar o totalitarismo comunista por aqui. Temos que ficar em alerta”.

Quem dera pudesse conversar rapidamente com seu tataravô,  saboreando uma xícara de café vinda direto de sua plantation. Muita coisa pra conversar em tão pouco tempo. Sabe como é, né. Raiz é tudo. 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A liberdade de expressão como salvo conduto para defender a barbarie

Nossa democracia ganha corpo com aperfeiçoamentos para avançar diariamente. Sua juventude demonstra imaturidade e aos poucos se corrige. Na pluralidade de vozes deste crescimento contínuo, a liberdade de expressão, reconhecida como um direito, se transformou em salvo conduto para qualquer asneira que se queira falar.

No Rio de Janeiro, um rapaz negro foi preso a um poste pelo pescoço por um grupo de justiceiros que o acusavam de roubos na área. O que se viu a seguir foi a velha máxima do "bandido bom, é bandido morto", que encontrou voz na mídia através da apresentadora de um telejornal do SBT, reforçando a defesa do discurso do preconceito e do ódio. Não é preciso ir longe para ouvir afirmações típicas: "respeite o pensamento tal", "você que sabe o que é liberdade de expressão, deveria respeitar a dos outros", e por aí vai.

Ora, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo 18º, garante a liberdade de pensamento, consciência, e religião. O artigo 19º assegura a liberdade de expressão e de informação. Voltando um pouco, o artigo 5º testifica a proibição da tortura, tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Vale lembrar que estamos num Estado Democrático de Direito, que funda suas bases nos princípios da dignidade humana e cabe ao Estado repreender uma atitude criminosa, dando ao cidadão a oportunidade de responder ao Poder Judiciário, que fundamenta sua decisão através da Lei.

Com comentários conservadores em seus telejornais, o SBT visa melhorar a audiência de uma área que sempre patinou, para  além disso invadir a internet e abastecer discussões polêmicas nas redes sociais em torno de temas espinhosos. São Paulo, Santa Catarina e Paraná têm a linha de frente da emissora composta por comentaristas enérgicos que, antes de tudo tem o direito a liberdade de expressão, mas sem que essa opinião passe do limite estabelecido por lei. 

Alguém pode me responder se posso aqui – neste blog com pouca repercussão,  mais um entre milhares de desconhecidos - defender a escravidão e o racismo?  E a tortura? De antemão, prefiro que não me digam, por que se trata de um crime, não é mesmo? O pessoal confunde liberdade de expressão com discurso criminoso para que a tortura ou execução sumária seja justificada em cadeia nacional.

As mensagens de ódio na TV aberta e a busca desenfreada de audiência a qualquer preço deveriam ter uma barreira clara: os concessionários se utilizam de um bem público. O espectro telecomunicações e de radiodifusão sonora (sons e imagens), foi expressamente elevado à categoria de bem público pelo artigo 157 da Lei 9.472/97 [03] – atendendo assim as finalidades e interesses públicos, por meio da exploração de tais serviços. Mas na prática, as emissoras utilizam o espectro público para seus interesses privados, inclusive desrespeitando direitos fundamentais à Constituição.

Não à toa, o Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro enviou uma nota de repúdio ao comentário da jornalista do SBT; colegas estão abrindo procedimentos no âmbito da classe; professores, associações e entidades estão denunciando ao Ministério Público a conduta da jornalista. Com a proporção elevada da polêmica, o SBT deixou claro que a opinião da apresentadora não reflete a visão da casa. 

O discurso articulado com base nas categorias estereotipadas associadas à oposição do bem contra o mal. O medo e o preconceito como ingrediente para a indignação. É a mistura perfeita para incentivar os "enclaves fortificados", alimentar a segregação e aumentar ainda mais as distâncias dentro de nossa sociedade doente.   

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

De bicicleta no trânsito de SP, descobri que sou vagabundo

“Vagabundo”. 

A expressão foi dita por uma motorista de um carro enorme, que adoraria ter passado por cima da minha bicicleta.  

Pedalava ontem (30) tranquilamente pela faixa da direita na manhã calma ‘pós-rush’ do bairro da Vila Olímpia, em São Paulo, na Rua Casa do Ator, bem na parte da subida, quando recebo o primeiro aviso com uma sonora buzina. Olhei para trás. A mulher (25 a 30 anos) gesticulou quase buscando na sua bolsa o documento que prova que aquela faixa é sua propriedade.

Calmamente, como sempre faço, indiquei com a mão o espaço livre à esquerda. Não adiantou. Aquele caro pedaço de terra era parte do seu trajeto e ela fazia questão de continuar reto, ignorando o esforço da minha pedalada na subida sob forte calor. Buzinou novamente, deixando o barulho soar por alguns segundos - até desistir. Resolveu ir pela esquerda, passando bem perto de mim com o recado em alto e bom som: “vagabundo”, retribuído logo a frente no semáforo, ponto de encontro favorito entre um ciclista e um motorista exaltado, com um belo sorriso, seguido de um “coraçãozinho”, feito a mão, tão propício para a ocasião. Eu adoro motoristas estressados. Contudo, fiquei intrigado, pensativo, sobre aquele momento tão rápido, mas que ganha outras interpretações em uma mente fértil.  

Ora, que significado pode ter “vagabundo”?

Rapidinho, o professor de língua portuguesa Pasquale Cipro Neto explica com um pequeno passeio pela etimologia da palavra. Vagabundo: “1) o antepositivo latino "vag-", que, entre outros significados, carrega o de ‘que se move de um lugar a outro’, "incerto", etc.; 2) o prefixo latino "-bundo", que carrega a ideia de "cheio ou rico de", "executor do processo de", "propenso a" etc.” 

Que surpresa. Pela primeira definição do professor, a motorista está absolutamente correta! A bicicleta que utilizo como meio de transporte é fundamental no meu dia a dia para eu me mover de um lugar a outro, apesar de muitas vezes meu caminho ser incerto. Ao desmontar a palavra, ainda descubro que sou cheio ou rico de VONTADE DE PEDALAR, poxa!

Entretanto, tudo depende do tom como se pronuncia a palavra e a mulher pareceu bem ríspida. Ou ela falou alto por causa do barulho da construção que havia ao lado? De forma pejorativa, sou vagabundo porque tenho cabelo raspado, ando de bermudão e com uma magrela velha? Sou vagabundo porque não possuo renda para manter um automóvel, ou porque não quero aderir a um? Ser vagabundo é não ter registro em carteira, pulando de galho em galho atrás de um trabalho temporário? Ser vagabundo é “atrapalhar” a fluidez do trânsito?

Pode passar, querida motorista. Eu só queria entender sua lógica. A certeza que sou vagabundo eu já tenho faz tempo.

sábado, 18 de janeiro de 2014

“Não tenha dúvida que muito pobre junto assusta”, diz jovem


Ao centro, de óculos, gravata
vermelha e terno, o advogado
Eliseu Soares, que registrou B.O.
de crime de racismo contra o shopping
JK Iguatemi. No canto esquerdo, também
de terno, segurança sorri.
Os “rolezinhos” nos shopping centers em São Paulo começaram como diversão de jovens da periferia, ganharam corpo com liminares que impediam a entrada deles, para agora revelar um grito dos excluídos em uníssono que estava entalado na garganta há tempos. 

Não se trata de um simples rolezinho, é contra o racismo. Sim, racismo! Aquele mesmo que a sociedade adora falar que não existe mais. O ato marcado no shopping JK Iguatemi, no Itaim Bibi, por movimentos sociais e jovens que aderiram à causa terminou com a ‘porta na cara’ – para minha surpresa.

Cheguei ao shopping pouco depois do almoço,13h15, entrei e dei uma volta. Resolvi retornar pelo mesmo corredor, atrás de dois negros que eram observados pelos seguranças com olhares desconfiados. O clima de tensão era perceptível. Diversas lojas estavam fechadas e os estabelecimentos abertos não pareciam à vontade. A grande imprensa marcava presença em peso na porta. Na saída, caminhei em direção ao Parque do Povo, local da concentração, 100 metros à frente. Ingênuo, até ali acreditava que o shopping permaneceria de portas abertas para por um fim nesta questão. Não havia nem policiais no entorno, apenas seguranças.

Dentro do parque, um grupo de aproximadamente cem pessoas (inclusive com muitos jovens da classe média) se preparava para sair às ruas, mas antes eram orientados a manter a tranquilidade quando adentrassem ao shopping. Eles também acreditavam. Barrar por quê? Estes jovens estavam armados apenas da enorme vontade de destruir essa barreira invisível – sem armas – munidos somente com idéias e respeito. Então, chegou o momento: com uma caixa de som portátil e microfone na mão, os jovens eram impulsionados a seguir entoando cantos como: “vem pra rua vem, contra o racismo”; – “chega de apartheid, é rolezinho nos shoppings da cidade”. Tudo em paz, com o trânsito parcialmente interditado e o sol a pino.

Quase na frente do shopping, a menção a Zumbi ajudou a inflamar os ânimos: “Por menos que conte a história, não esqueça meu povo. Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo”, cantavam os presentes (cerca de 150 pessoas) em alto e bom som até darem de cara com o JK Iguatemi FECHADO. Desta vez, não havia liminar para impedir a entrada de quem quer que fosse e para piorar, nenhuma explicação. Pior: do outro lado do shopping a entrada para veículos recebia clientes normalmente.

Revolta no ar. Após alguns discursos, a advogado Dr. Elizeu Soares Lopes tomou a palavra para colocar os pingos nos ‘is’: “Os shoppings mandam a mensagem. Melhor não ter ninguém aqui do que ter preto, gente da periferia, o que reforça o racismo no Brasil. O shopping não fecha no natal, não fecha no ano novo, mas fecha pra gente da periferia”, enfatizou.

Temos há 28 anos a Lei nº 7.437/85 de 20 de dezembro de 1985, que ficou conhecida como Lei Caó, em homenagem ao autor Carlos Alberto de Oliveira.  A legislação define como crime o ato de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Também regulamentou o trecho da Constituição Federal que torna inafiançável e imprescritível o crime de racismo, após dizer que todos são iguais sem discriminação de qualquer natureza. Legalmente, é proibido recusar ou impedir acesso a estabelecimentos comerciais, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador (reclusão de um a três anos); entre outros.

Amparado pela legislação, Dr. Eliseu Lopes e representantes dos movimentos sociais decidiram registrar um Boletim de Ocorrência na 96ºDP (Brooklin). “Vamos até a delegacia registrar um B.O. de crime de racismo e constrangimento ilegal contra nós que aqui estamos. Com isso, também vamos conseguir uma liminar porque seremos resguardados pela Constituição”. A ideia do Dr. Elizeu foi aplaudida, apoiada e comemorada. “Hoje não vai ter lucro”, bradavam os jovens.

Estiveram no local membros dos movimentos UNEAFRO, Levante Popular da Juventude, Quilombação, Movimento Nacional Raça e Classe, Coordenação Nacional das Entidades Negras e dezenas de outros apoiadores, como me garantiu um interlocutor. “Vamos continuar ouvindo às ruas. Os jovens da periferia vão dizer qual será o próximo rolezinho”, afirmou Junior Rocha, integrante do Levante Popular da Juventude.

Para ele, não se trata só de construir espaços que serão úteis à periferia, mas sim, alertar sobre a segregação velada, o pré julgamento que ocorre em São Paulo, onde negros são discriminados através de um tratamento “diferente”. “Somos programados para ficar em casa, ficar no gueto social. Realmente faltam aparelhos públicos e opções de lazer na periferia, mas falta acesso à cidade. A cidade precisava ser mais acolhedora”, relatou o jovem que acredita que o pavor de parte da classe média com os rolezinhos têm fácil explicação. “Não tenha dúvida que muito pobre junto assusta”, finalizou. 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Ao "pé da letra"

É ironia, porra!
Os elementos necessitam de muito exagero porque quando a ironia é muito sutil, o vilão torna-se herói. Pior ainda quando se é um irônico incorrigível, viciado em injeções diárias de ironia para demonstrar, no meu caso, toda a indignação, revolta, sarcasmo, diante de uma situação.

É, leitor. Confesso que utilizar essa figura de linguagem não é fácil (para vocês). É crescente o número de pessoas que captam a mensagem ao “pé da letra”. Assim, o deboche, o sarcasmo, a sátira, a zombaria, são sequestrados e colocados em cativeiro - até morrerem de inanição.

A alimentação da interpretação de texto anda carente de todos os tipos de vitaminas. O principal agente deteriorante é a “falta de tempo”, que explica o motivo de a leitura ser escassa: seja de livros, revistas, jornais ou internet. A rapidez e o dinamismo diário servem como desculpa para a chamada “desatenção”, criando uma enorme bolha dentro da mensagem que tem seu conteúdo entendido de maneira literal.

Nos últimos tempos, o escritor Antonio Prata e o colunista Gregório Duvivier souberam bem como é, ao mesmo tempo, chato e divertido “jogar” com a ironia. Mas, diante da repercussão colossal tiveram que explicar seus textos na semana seguinte. Por isso, não há outro jeito senão avisar o leitor com um pequeno aviso no rodapé que aquele conteúdo, na realidade, é uma ironia. O aviso vale mais que a dor de cabeça posterior e que o aplauso do perdido.

Tristes tempos esses da "modernidade dispersa".