sábado, 18 de janeiro de 2014

“Não tenha dúvida que muito pobre junto assusta”, diz jovem


Ao centro, de óculos, gravata
vermelha e terno, o advogado
Eliseu Soares, que registrou B.O.
de crime de racismo contra o shopping
JK Iguatemi. No canto esquerdo, também
de terno, segurança sorri.
Os “rolezinhos” nos shopping centers em São Paulo começaram como diversão de jovens da periferia, ganharam corpo com liminares que impediam a entrada deles, para agora revelar um grito dos excluídos em uníssono que estava entalado na garganta há tempos. 

Não se trata de um simples rolezinho, é contra o racismo. Sim, racismo! Aquele mesmo que a sociedade adora falar que não existe mais. O ato marcado no shopping JK Iguatemi, no Itaim Bibi, por movimentos sociais e jovens que aderiram à causa terminou com a ‘porta na cara’ – para minha surpresa.

Cheguei ao shopping pouco depois do almoço,13h15, entrei e dei uma volta. Resolvi retornar pelo mesmo corredor, atrás de dois negros que eram observados pelos seguranças com olhares desconfiados. O clima de tensão era perceptível. Diversas lojas estavam fechadas e os estabelecimentos abertos não pareciam à vontade. A grande imprensa marcava presença em peso na porta. Na saída, caminhei em direção ao Parque do Povo, local da concentração, 100 metros à frente. Ingênuo, até ali acreditava que o shopping permaneceria de portas abertas para por um fim nesta questão. Não havia nem policiais no entorno, apenas seguranças.

Dentro do parque, um grupo de aproximadamente cem pessoas (inclusive com muitos jovens da classe média) se preparava para sair às ruas, mas antes eram orientados a manter a tranquilidade quando adentrassem ao shopping. Eles também acreditavam. Barrar por quê? Estes jovens estavam armados apenas da enorme vontade de destruir essa barreira invisível – sem armas – munidos somente com idéias e respeito. Então, chegou o momento: com uma caixa de som portátil e microfone na mão, os jovens eram impulsionados a seguir entoando cantos como: “vem pra rua vem, contra o racismo”; – “chega de apartheid, é rolezinho nos shoppings da cidade”. Tudo em paz, com o trânsito parcialmente interditado e o sol a pino.

Quase na frente do shopping, a menção a Zumbi ajudou a inflamar os ânimos: “Por menos que conte a história, não esqueça meu povo. Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo”, cantavam os presentes (cerca de 150 pessoas) em alto e bom som até darem de cara com o JK Iguatemi FECHADO. Desta vez, não havia liminar para impedir a entrada de quem quer que fosse e para piorar, nenhuma explicação. Pior: do outro lado do shopping a entrada para veículos recebia clientes normalmente.

Revolta no ar. Após alguns discursos, a advogado Dr. Elizeu Soares Lopes tomou a palavra para colocar os pingos nos ‘is’: “Os shoppings mandam a mensagem. Melhor não ter ninguém aqui do que ter preto, gente da periferia, o que reforça o racismo no Brasil. O shopping não fecha no natal, não fecha no ano novo, mas fecha pra gente da periferia”, enfatizou.

Temos há 28 anos a Lei nº 7.437/85 de 20 de dezembro de 1985, que ficou conhecida como Lei Caó, em homenagem ao autor Carlos Alberto de Oliveira.  A legislação define como crime o ato de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Também regulamentou o trecho da Constituição Federal que torna inafiançável e imprescritível o crime de racismo, após dizer que todos são iguais sem discriminação de qualquer natureza. Legalmente, é proibido recusar ou impedir acesso a estabelecimentos comerciais, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador (reclusão de um a três anos); entre outros.

Amparado pela legislação, Dr. Eliseu Lopes e representantes dos movimentos sociais decidiram registrar um Boletim de Ocorrência na 96ºDP (Brooklin). “Vamos até a delegacia registrar um B.O. de crime de racismo e constrangimento ilegal contra nós que aqui estamos. Com isso, também vamos conseguir uma liminar porque seremos resguardados pela Constituição”. A ideia do Dr. Elizeu foi aplaudida, apoiada e comemorada. “Hoje não vai ter lucro”, bradavam os jovens.

Estiveram no local membros dos movimentos UNEAFRO, Levante Popular da Juventude, Quilombação, Movimento Nacional Raça e Classe, Coordenação Nacional das Entidades Negras e dezenas de outros apoiadores, como me garantiu um interlocutor. “Vamos continuar ouvindo às ruas. Os jovens da periferia vão dizer qual será o próximo rolezinho”, afirmou Junior Rocha, integrante do Levante Popular da Juventude.

Para ele, não se trata só de construir espaços que serão úteis à periferia, mas sim, alertar sobre a segregação velada, o pré julgamento que ocorre em São Paulo, onde negros são discriminados através de um tratamento “diferente”. “Somos programados para ficar em casa, ficar no gueto social. Realmente faltam aparelhos públicos e opções de lazer na periferia, mas falta acesso à cidade. A cidade precisava ser mais acolhedora”, relatou o jovem que acredita que o pavor de parte da classe média com os rolezinhos têm fácil explicação. “Não tenha dúvida que muito pobre junto assusta”, finalizou. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário