sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

De bicicleta no trânsito de SP, descobri que sou vagabundo

“Vagabundo”. 

A expressão foi dita por uma motorista de um carro enorme, que adoraria ter passado por cima da minha bicicleta.  

Pedalava ontem (30) tranquilamente pela faixa da direita na manhã calma ‘pós-rush’ do bairro da Vila Olímpia, em São Paulo, na Rua Casa do Ator, bem na parte da subida, quando recebo o primeiro aviso com uma sonora buzina. Olhei para trás. A mulher (25 a 30 anos) gesticulou quase buscando na sua bolsa o documento que prova que aquela faixa é sua propriedade.

Calmamente, como sempre faço, indiquei com a mão o espaço livre à esquerda. Não adiantou. Aquele caro pedaço de terra era parte do seu trajeto e ela fazia questão de continuar reto, ignorando o esforço da minha pedalada na subida sob forte calor. Buzinou novamente, deixando o barulho soar por alguns segundos - até desistir. Resolveu ir pela esquerda, passando bem perto de mim com o recado em alto e bom som: “vagabundo”, retribuído logo a frente no semáforo, ponto de encontro favorito entre um ciclista e um motorista exaltado, com um belo sorriso, seguido de um “coraçãozinho”, feito a mão, tão propício para a ocasião. Eu adoro motoristas estressados. Contudo, fiquei intrigado, pensativo, sobre aquele momento tão rápido, mas que ganha outras interpretações em uma mente fértil.  

Ora, que significado pode ter “vagabundo”?

Rapidinho, o professor de língua portuguesa Pasquale Cipro Neto explica com um pequeno passeio pela etimologia da palavra. Vagabundo: “1) o antepositivo latino "vag-", que, entre outros significados, carrega o de ‘que se move de um lugar a outro’, "incerto", etc.; 2) o prefixo latino "-bundo", que carrega a ideia de "cheio ou rico de", "executor do processo de", "propenso a" etc.” 

Que surpresa. Pela primeira definição do professor, a motorista está absolutamente correta! A bicicleta que utilizo como meio de transporte é fundamental no meu dia a dia para eu me mover de um lugar a outro, apesar de muitas vezes meu caminho ser incerto. Ao desmontar a palavra, ainda descubro que sou cheio ou rico de VONTADE DE PEDALAR, poxa!

Entretanto, tudo depende do tom como se pronuncia a palavra e a mulher pareceu bem ríspida. Ou ela falou alto por causa do barulho da construção que havia ao lado? De forma pejorativa, sou vagabundo porque tenho cabelo raspado, ando de bermudão e com uma magrela velha? Sou vagabundo porque não possuo renda para manter um automóvel, ou porque não quero aderir a um? Ser vagabundo é não ter registro em carteira, pulando de galho em galho atrás de um trabalho temporário? Ser vagabundo é “atrapalhar” a fluidez do trânsito?

Pode passar, querida motorista. Eu só queria entender sua lógica. A certeza que sou vagabundo eu já tenho faz tempo.

sábado, 18 de janeiro de 2014

“Não tenha dúvida que muito pobre junto assusta”, diz jovem


Ao centro, de óculos, gravata
vermelha e terno, o advogado
Eliseu Soares, que registrou B.O.
de crime de racismo contra o shopping
JK Iguatemi. No canto esquerdo, também
de terno, segurança sorri.
Os “rolezinhos” nos shopping centers em São Paulo começaram como diversão de jovens da periferia, ganharam corpo com liminares que impediam a entrada deles, para agora revelar um grito dos excluídos em uníssono que estava entalado na garganta há tempos. 

Não se trata de um simples rolezinho, é contra o racismo. Sim, racismo! Aquele mesmo que a sociedade adora falar que não existe mais. O ato marcado no shopping JK Iguatemi, no Itaim Bibi, por movimentos sociais e jovens que aderiram à causa terminou com a ‘porta na cara’ – para minha surpresa.

Cheguei ao shopping pouco depois do almoço,13h15, entrei e dei uma volta. Resolvi retornar pelo mesmo corredor, atrás de dois negros que eram observados pelos seguranças com olhares desconfiados. O clima de tensão era perceptível. Diversas lojas estavam fechadas e os estabelecimentos abertos não pareciam à vontade. A grande imprensa marcava presença em peso na porta. Na saída, caminhei em direção ao Parque do Povo, local da concentração, 100 metros à frente. Ingênuo, até ali acreditava que o shopping permaneceria de portas abertas para por um fim nesta questão. Não havia nem policiais no entorno, apenas seguranças.

Dentro do parque, um grupo de aproximadamente cem pessoas (inclusive com muitos jovens da classe média) se preparava para sair às ruas, mas antes eram orientados a manter a tranquilidade quando adentrassem ao shopping. Eles também acreditavam. Barrar por quê? Estes jovens estavam armados apenas da enorme vontade de destruir essa barreira invisível – sem armas – munidos somente com idéias e respeito. Então, chegou o momento: com uma caixa de som portátil e microfone na mão, os jovens eram impulsionados a seguir entoando cantos como: “vem pra rua vem, contra o racismo”; – “chega de apartheid, é rolezinho nos shoppings da cidade”. Tudo em paz, com o trânsito parcialmente interditado e o sol a pino.

Quase na frente do shopping, a menção a Zumbi ajudou a inflamar os ânimos: “Por menos que conte a história, não esqueça meu povo. Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo”, cantavam os presentes (cerca de 150 pessoas) em alto e bom som até darem de cara com o JK Iguatemi FECHADO. Desta vez, não havia liminar para impedir a entrada de quem quer que fosse e para piorar, nenhuma explicação. Pior: do outro lado do shopping a entrada para veículos recebia clientes normalmente.

Revolta no ar. Após alguns discursos, a advogado Dr. Elizeu Soares Lopes tomou a palavra para colocar os pingos nos ‘is’: “Os shoppings mandam a mensagem. Melhor não ter ninguém aqui do que ter preto, gente da periferia, o que reforça o racismo no Brasil. O shopping não fecha no natal, não fecha no ano novo, mas fecha pra gente da periferia”, enfatizou.

Temos há 28 anos a Lei nº 7.437/85 de 20 de dezembro de 1985, que ficou conhecida como Lei Caó, em homenagem ao autor Carlos Alberto de Oliveira.  A legislação define como crime o ato de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Também regulamentou o trecho da Constituição Federal que torna inafiançável e imprescritível o crime de racismo, após dizer que todos são iguais sem discriminação de qualquer natureza. Legalmente, é proibido recusar ou impedir acesso a estabelecimentos comerciais, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador (reclusão de um a três anos); entre outros.

Amparado pela legislação, Dr. Eliseu Lopes e representantes dos movimentos sociais decidiram registrar um Boletim de Ocorrência na 96ºDP (Brooklin). “Vamos até a delegacia registrar um B.O. de crime de racismo e constrangimento ilegal contra nós que aqui estamos. Com isso, também vamos conseguir uma liminar porque seremos resguardados pela Constituição”. A ideia do Dr. Elizeu foi aplaudida, apoiada e comemorada. “Hoje não vai ter lucro”, bradavam os jovens.

Estiveram no local membros dos movimentos UNEAFRO, Levante Popular da Juventude, Quilombação, Movimento Nacional Raça e Classe, Coordenação Nacional das Entidades Negras e dezenas de outros apoiadores, como me garantiu um interlocutor. “Vamos continuar ouvindo às ruas. Os jovens da periferia vão dizer qual será o próximo rolezinho”, afirmou Junior Rocha, integrante do Levante Popular da Juventude.

Para ele, não se trata só de construir espaços que serão úteis à periferia, mas sim, alertar sobre a segregação velada, o pré julgamento que ocorre em São Paulo, onde negros são discriminados através de um tratamento “diferente”. “Somos programados para ficar em casa, ficar no gueto social. Realmente faltam aparelhos públicos e opções de lazer na periferia, mas falta acesso à cidade. A cidade precisava ser mais acolhedora”, relatou o jovem que acredita que o pavor de parte da classe média com os rolezinhos têm fácil explicação. “Não tenha dúvida que muito pobre junto assusta”, finalizou. 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Ao "pé da letra"

É ironia, porra!
Os elementos necessitam de muito exagero porque quando a ironia é muito sutil, o vilão torna-se herói. Pior ainda quando se é um irônico incorrigível, viciado em injeções diárias de ironia para demonstrar, no meu caso, toda a indignação, revolta, sarcasmo, diante de uma situação.

É, leitor. Confesso que utilizar essa figura de linguagem não é fácil (para vocês). É crescente o número de pessoas que captam a mensagem ao “pé da letra”. Assim, o deboche, o sarcasmo, a sátira, a zombaria, são sequestrados e colocados em cativeiro - até morrerem de inanição.

A alimentação da interpretação de texto anda carente de todos os tipos de vitaminas. O principal agente deteriorante é a “falta de tempo”, que explica o motivo de a leitura ser escassa: seja de livros, revistas, jornais ou internet. A rapidez e o dinamismo diário servem como desculpa para a chamada “desatenção”, criando uma enorme bolha dentro da mensagem que tem seu conteúdo entendido de maneira literal.

Nos últimos tempos, o escritor Antonio Prata e o colunista Gregório Duvivier souberam bem como é, ao mesmo tempo, chato e divertido “jogar” com a ironia. Mas, diante da repercussão colossal tiveram que explicar seus textos na semana seguinte. Por isso, não há outro jeito senão avisar o leitor com um pequeno aviso no rodapé que aquele conteúdo, na realidade, é uma ironia. O aviso vale mais que a dor de cabeça posterior e que o aplauso do perdido.

Tristes tempos esses da "modernidade dispersa".